19 fevereiro 2008

Sweeney Todd

Tim Burton sabe que aparar os pêlos da barba é muito mais do que manutenção da higiene: é uma declaração de estilo pessoal e ele inspira-se no serviço completo da lâmina do que da máquina de barbear para realizar seus melhores filmes. Retomando a parceria com Johnny Depp, com quem já havia arriscado uns cortes de cabelo nervosos no clássico “Edward Scissor Hands” (assim como Alan Rickman, o vilão deste filme, em “Blow Dry”), Burton agora fecha o foco no fenómeno da metrossexualidade e no despertar masculino para os cuidados estéticos. Depp já pode esquecer essa palhaçada de arte dramática (que não leva a lugar nenhum) e, com a experiência adquirida em “Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet”, ingressar numa carreira promissora como personal stylist (pois não podemos esquecer o crossdressing de “Ed Wood” e seu fascinante desfile de angorás). Quando Burton e Depp filmarem um roteiro sobre pedicure, até que podiam abrir o salão de beleza mais gótico da face da Terra.

Assistir a “Edward Scissor Hands”, com a sua cenografia hiper-colorida, mise-en-scène semelhante a de um filme de John Waters e seu tom geral de fábula contemporânea, era como entrar num salão de beleza feminino pela primeira vez: para qualquer homem que tenha passado a vida inteira a cortar o cabelo na rústica barbearia do bairro, o estranhamento ao entrar num típico coiffeur, com seus secadores-capacete, fumaça de laquê, cheiro de esmalte, pirâmides de bobs e celofane, enfim, toda a afetação, iguala-se a de um homem aterrissando num planeta no qual alguns hábitos alienígenas lembram os de seu planeta natal, mas ele não tem a certeza necessária para arriscá-los. A vingança finalmente chega: em “Sweeney Todd”, são as mulheres que se aventurarão num autêntico “cabeleireiro” de esquina para machos: as generosas poltronas estofadas de couro, as revistas de mulher pelada descompromissadamente misturadas com as “Caras” de três meses atrás, o futebol (qualquer jogo) na TV, o piso xadrez caminhado por senhores de idade na profissão desde jovens e que ainda despedem-se dos clientes com uma espanada de talco em suas nucas recém-raspadas. Longe estamos do subúrbio americano de casas gritantemente pintadas: estamos numa Londres lúgubre, monocromática, repleta de baratas. Não há fabula e nem romance, mas um autêntico filme de horror banhado com o sangue de acidentes de barbearia. Não resta nada do sonho feminino que é o de se emperiquitar; apenas o pesadelo masculino que é o asseio pessoal.

Pensemos assim: no salão de beleza, cobra-se o implante capilar. No barbeiro, cobra-se o cabelo cortado à máquina. Barbearia também é o termo que define os quartetos vocais e a música harmoniosa cantada estritamente a capella, um retorno ao básico já romantizado por Rossini e Mozart (não por acaso, a história paralela do marinheiro apaixonado por Johanna ecoa a sinopse de “O Barbeiro de Sevilha”). Stephen Sondheim, autor do musical da Broadway no qual o filme se enraíza, pode não ter alcançado patamar tão ambicioso (é verdade que as canções são pouco marcantes), mas sua adaptação cinematográfica não traz nem um pouco da teatralidade rançosa a qual filmes operísticos normalmente são condenados. Menos Mozart e mais um sombrio Jacques Demy: troca de diálogos inteligentes em forma de canções, fazendo cenas, como a que Sweeney Todd/Benjamin Barker (Depp) e Mrs. Lovett (Helena Bonham Carter, brilhante como a própria “Noiva Cadáver”) supõem os diferentes sabores da carne humana tal qual os transeuntes fossem um cardápio ambulante, ainda mais deliciosas.

Teme-se, com o uso despropositado de uma CGI logo no início do filme (uma desajeitada e dispensável sequência na qual a câmera rapidamente passeia pelas sarjetas de Londres até nos levar pela primeira vez à famigerada Fleet Street) e com o saldo negativo do também musical “Charlie e a Fábrica de Chocolates” (um engodo desgraçado que, assim como “O Planeta dos Macacos”, deveria ser condenado ao esquecimento completo instantaneamente) que Burton sucumbirá a esta fase de sua filmografia, sobrecarregada de recursos (mas menos impactante devido a dependência do computador: não podemos nos esquecer que a vizinhança que serviu de cenário para “Edward Mãos de Tesoura” manteve as cores nas casas pintadas para produção do filme, provando a potência da visão do realizador quando traduzida para o material), ainda fantasiosa, mas geralmente inofensiva. As preocupações dissipam-se mais do que rapidamente. Basta apenas uma parede angulosa – que desregula completamente a organização do cenário principal, a barbearia de Todd – para nos lembrar o que faz dele um dos grandes realizadores: Burton talvez seja o único expressionista americano e se a sua filmografia for a única prova de que um movimento como tal jamais existiu no cinema, trata-se de um documento de uma solidez invejável. Não pretendo assumir que “Sweeney Todd” está ao nível de “O Gabinete do Dr. Caligari”, mas mais do que influenciado, Burton parece compartilhar das inspirações originais: Londres, como aqui cenografada, também parece o produto de mentes insanas, apenas materializada numa realidade bastante palpável. As ruas estreitas que não levam a lugar nenhum. A atmosfera onírica (potencializada pelo facto que os personagens volta e meia irrompem em canções). E, claro, a desproporção: ela é cenográfica, como já mencionei, atmosférica e temática: “Sweeney Todd” é um filme de horror, um filme de horror mesmo, que não compromete o seu peso e nem no seu banho de sangue (e quantas pessoas irão despreparadas para os jorros intensos de vermelho que, em dado momento, chegam a atingir a lente da câmera... eheheh!) por se tratar de uma superprodução hollywoodiana. E cantada. Musicais subversivos não são nenhuma novidade: podemos lembrar desde “The Happiness of the Katakuris” (Takashi Miike), “Meet The Feebles” (Peter Jackson), ou os independentes “Dead & Breakfast” (Matthew Leutwyler) e “Cannibal! The Musical” (Trey Parker), mas enquanto todos estes preferem destacar a comicidade, Burton consegue exemplarmente preservar o tom horripilante apesar do inusitado cantar. Não há caricatura ou paródia do cinema de horror: a escatologia é sóbria e chocante, mesmo se ela faz parte da coreografia do musical.
Burton pode ser pensado como David Lynch quando ele perturba o colorido sonho americano (“Batman – O Regresso” permanece a obra-prima mais subestimada do cinema americano; quanto tempo demorará para que percebam o quão inacreditável é que tal subversão da iconicidade pop num austero pesadelo filmado já foi um dia a idéia de um filme blockbuster?), mas é incomparável quando faz o delírio febril se passar por um produto de consumo tão aceitável quanto “o Capuchinho Vermelho”. Haveria algo de acusatório, portanto, neste cinema de Burton, quando ele rompe com as expectativas para realizar, a partir de um tema tão inofensivo quanto um personagem de quadrinhos, um filme de uma perversidade surpreendente – o caso, aliás, das superproduções actuais? Concentremo-nos no vice-versa, quando Burton realiza filmes adoráveis a partir das sinopses mais perturbadas. Trazendo o último parênteses para o corpo do texto – um movimento estranho e academicamente repreensível – mas as plateias iam assistir ao “Batman – O Regresso” no cinema conscientes de tratar-se sim de um filme de super-heróis, mas um feito por Tim Burton: antecipava-se a reformulação, a traição com as expectativas correntes. Se ainda está a pensar ver este tal filme de horror de Tim Burton, pode ir aguardando a mesma inventiva deturpação das normas: poucas vezes os jorros de sangue arterial foram tão inspiradores a nos fazer cantar de emoção.

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