16 janeiro 2008

Entrevista a David Cronemberg - O filósofo da Violência

“A morte faz parte da vida e os filmes de terror são como uma compensação para a consciência e para os medos desse tipo de audiência”

Com o triller sobre a máfia, Promessas Perigosas, David Cronenberg fez um dos seus melhores e mais duros filmes de sempre.
A revista Focus foi falar com o Dr. Mad, sobre violência, assassínio e tripas.




“O antigo mestre do terror volta a atacar, mas desta vez com um triller. Cronenberg confessa já ter visto filmes snuff e perceber para além da história, da psicologia da violência.

Focus – Disse uma vez que uma parte do público está interessado em entretenimento leve, mas a outra parte – mais o seu público alvo, como referiu – vê o cinema como filosofia. A que tipo de público se refere?

David Cronemberg – Heidegger e Schoppenhauer, ou Sartre e Kierkegaard. Os existencialistas e os seus percussores, pois eu vejo-me antes de tudo como um existencialista.

Focus – No seu novo trabalho Promessas Perigosas vemos várias estrelas europeias a actuar lado a lado com Viggo Mortensen. Há 30 anos utilizava-se muito o termo eurodeputing no ramo do cinema...

David Cronemberg – Conheço esse termo e sei o que quer dizer: acontecia em todas as grandes co-produções, retirando-lhes a alma. Mas já nessa altura achava isso fascinante, porque encontravam-se actores que de outra forma nunca trabalhariam juntos, com uma pronúncia fiel à aventura e outras “falhas”. Queria trabalhar com os melhores actores, sem qualquer tipo de pressão financeira como num qualquer tipo de europuding. Até podia ter recorrido a actores russos para representar a máfia russa, se tivesse encontrado alguns que correspondessem às expectativas e que também falassem um inglês aceitável. Assim temos um americano, um francês, um alemão e um polaco a fazer o papel de russos. É claro que foi um desafio, mas o resultado da minha aventura foi muito surpreendente.

Focus – Mortensen esteve na Rússia a fazer pesquisa para o papel. Foi consigo?

David Cronemberg – Não, foi sozinho. Um dos problemas das celebridades actualmente é que já não conseguem observar as pessoas e os seus comportamentos. Quando Brad Pitt está na rua a pesquisar um papel, as pessoas reagem à sua presença e comportam-se de acordo com isso. Viggo, por outro lado simplesmente desapareceu durante dez dias na Rússia, aparecendo entretanto em São Peterburgo e na Sibéria. Fez muito bem, porque existem diferenças no comportamento dos russos no estrangeiro e entre os seus pares.

Focus – Promessas Perigosas é um filme muito violento, tema que já se tornou comum nas suas obras...


David Cronemberg – Sim, um assassinato é o término de uma existência humana e este momento perturbador também é partilhado pelos espectadores. Em filmes como a série Bourne há não sei quantos mortos, em certa medida isso é transmitido pelo corte de forma curta e expressionista. Neste caso temos três ou quatro assassinatos. Para mim é extremamente importante que todas as suas consequências cheguem a vias de facto.

Focus – Da forma mais naturalista possível?

David Cronemberg – Sim. Também acho estimulante que não sejam utilizadas armas. O acto de matar tem sempre algo de distante, abstracto. Se aqui se matar com uma faca, o aspecto físico do acto é muito mais imprevisível. O assassino, e com ele os espectadores, sente o que a sua vítima está a fazer. As armas de fogo foram tabu durante muito tempo, entre o crime organizado de Londres, onde se passa o filme. Era assim porque a polícia também as usava. É claro que com a ameaça do terrorismo tudo isso mudou.

Focus – A violência faz parte do fascínio do cinema e no submundo fala-se do fenómeno dos filmes snuff, em que se pode ver pessoas a serem realmente assassinadas. Joel Schumacher focou esse tema no 8MM e após uma longa investigação concluiu que eram um mito. No entanto pouco tempo depois do filme sair, surgiram os primeiros filmes de decapitações na Internet...

David Cronemberg – Sim, também creio que o fenómeno dos filmes snuff tinham algo que não é real. Mas agora podem ver-se em casa filmes de decapitações e apedrejamentos, o que até seria chocante para o próprio criminoso. Na minha opinião há uma grande componente sexual ligada a este fenómeno. Estes videos de decapitações parecem-se muito com um ritual homosexual. A discussão sobre violência no cinema ( e isto também em relação aos meus filmes ) reflecte sempre a preocupação se poderá levar á sua aceitação e habituação. Agora, com os americanos a ver como os seus compatriotas são decapitados em terras de que nunca ouviram falar, a sensibilazação é extremamente alta!

Focus – Porque vê esse tipo de coisas?

David Cronemberg – Só vi um. Pensei apenas que tinha de o fazer um dia.

Focus – Michael Winterbottom em Coração Poderoso, conta a história do rapto e assassinato de Daniel Pearl. Disse que, se visse o filme de decapitação de Daniel, estaria ao mesmo nível do assassino...

David Cronemberg – Não vejo as coisas dessa maneira, mas devo concordar que é extremamente perturbador e que preferíamos retirar essas imagens da nossa mente.

Focus – Será que os novos filmes de terror, como Hostel ou Saw, são uma reacção a estas imagens?

David Cronemberg – Não sei dizer, porque não os vi. Mas há muitos anos que estou ligado ao sentido do terror e a minha resposta-padrão é que a morte faz parte da vida. O cinema permite explorar alguns desses medos com alguma consciência, saindo-se da sala totalmente renascido. De certa forma esta tese faz sentido; estes filmes de terror são uma compensação para a consciência e os medos das pessoas.

Focus – Há uma parte perturbadora no filme, na qual Viggo está nu na sauna e tem de desarmar dois assassinos. Queria mostrar algo que ainda não tivesse sido visto?

David Cronemberg – Não, nem pensar nisso. Estas imagens foram feitas de forma bastante orgânica: vai-se a uma sauna, para controlar a tatuagem ritualista de um terceiro, para olhar para ele e controlá-lo. É então que tudo acontece. Podíamos ter feito tudo no escuro, para que não se visse nada, ou então Viggo teria mantido a toalha na cintura numa luta entre a vida e morte. Mas assim a cena teria um efeito totalmente diferente nas pessoas: seria ridícula!”



Fonte: Semanário Focus nº430 de 9 a 15/01/2008

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